domingo, 6 de dezembro de 2009

Olhos vendados

Lembro-me perfeitamente, tudo muito nítido. Dentro de um trem pela primeira vez. Escolhi sentar-me em qualquer lugar — na verdade num lugar que me desse uma visão abrangente de tudo. Estava encantada. Não sei por que, mas tudo parecia uma bela cena de filme. Uma musica antiga ao fundo, as janelas parecendo reproduções de cenas, tudo passando rapidamente. O trem parou. Era uma estação a mais, e então eu observei. Da janela esquerda, uma árvore se contorcia para mim. Parecia implorar por ajuda, ofegante. Eu pude ouvir um distante grito de dor, e preferi pensar que não tinha algo a ver com aquela íngreme tora com suas inúmeras reproduções de braços. Era similar a algo fugindo do inferno. Pensei em ajudá-la, juro que pensei, mas meu medo berrou, me deixando em estado de choque. Era o medo de ir socorrê-la e não conseguir mais voltar, ficar presa ali. Medo de que ela me imergisse em sua angústia e que me devorasse, afobada do jeito que estava. Mais de uma vez desviei os olhos dela, como um ato de covardia. Não conseguia fugir de seu sofrimento, mas não tinha forças para ajudá-la. Ela era seca, sem vida, mas eu sentia que ainda havia esperanças para aquele ser colérico. Era torturante ouvir seus gemidos, e eu desejei que o trem saísse dali, o mais rápido possível. Devem achar que sou louca, é claro. A questão é que ninguém tem costume em prestar atenção em nada além de si. Só o que importa é seu ego. O nosso desejo sempre fala mais alto, é a verdade. Somos todos surdos para o mundo. Ignoramos descaradamente o que está logo ali, urrando diante de nós, e então, tapamos nossos olhos e apenas deixamos para trás tudo o que não anda para frente. Não vejo normalidade em tentar seguir o modelo de uma vida perfeita onde tudo é perfeito, mas convivendo com a imparcialidade cega, com o medo de se virar para trás e ver vidas arquejantes se arrastando. Míseras almas sofridas que imploram socorro, e nós, com certeza, nos fazemos de desentendidos e de pobres coitados incapazes de estenderem o braço e abrir a boca e o coração. Basta desacomodarmos a vidinha medíocre que levamos, e o que é óbvio, pisar na realidade do mundo. Não adianta acordar, e viver. O que adianta é já dormir com armaduras e sepultar a injustiça. Não é possível que sejamos tão inúteis.

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